quinta-feira, 8 de maio de 2014

Livro - Silenciosamente, Amor! Cap.2


Capítulo 2 – Ambiguidades 



Em uma cidadezinha bucólica em meio a uma noite fria e nublada, o ônibus acelerado atravessa a rua calçada com pedras de paralelepípedos e contorna a esquina. Em um dos lados da rua quarteirões descampados e escuros cobertos por muito mato alto, e do outro uma minúscula
rodoviária antiga e sem muros. Tendo apenas um pequeno espaço para os ônibus pararem, quatro pequenas plataformas separadas por faixas amarelas pintadas ao chão. Júlia ao ver a rodoviária levanta-se, pega a sua mala que estava no bagageiro e a coloca no chão. Quando de repente o ônibus faz uma curva brusca para se alinhar na plataforma de desembarque e Júlia sem estar se segurando se desequilibra, e é empurrada para a janela. Ela se agarra como pode no bagageiro, mas é arremessada para o colo de Pablo, que a segura firme. A moça fica completamente sem graça, levanta-se rapidamente ajeitando a roupa e fica sem saber o que dizer.
- Desculpa... Nossa! Eu não sei como... Obrigado, tá. Diz a moça ao rapaz. Ela pega sua bolsa e sua mala e parte corredor a fora, querendo sair o mais rápido possível dali. Pablo fica envergonhado e permanece calado. Ao dar um paço desajeitado carregando suas bagagens, a moça com seu sapado com meio salto vermelho torce o pé, mas rápido se recompõe. É quando, ela cabisbaixa se vira novamente para o rapaz e diz:
- Ah! Desculpa tá. Eu estava nervosa àquela hora, desculpa.
- Tudo bem, eu também estava sonolento por causa de um remédio e... Tudo bem. Fala Pablo fazendo um gesto com a mão, dizendo que a moça poderia ir. Ao ouvir “remédio”, Júlia teve certeza que aquele homem tinha sérios problemas, ela sorri discretamente e foge dali, arrastando novamente a sua mala pelo corredor apertado. Júlia desce do ônibus às pressas sem saber para onde ir, quando ao longe avista um guichê da única empresa que atua naquela minúscula rodoviária. Apressada ela parte rumo ao lugar, arrastando sua mala e carregando sua imensa bolsa, ela vira-se para trás curiosa e vê Pablo meio desajeitado descer do ônibus e falar com o motorista. Ela aperta o passo fugindo do jovem, enquanto ele ajuda o motorista a pegar umas malas de um passageiro que também acabou de desembarcar, um velho baixinho e caipira.
- Ei rapaz! Eu quero uma passagem de volta. Fala Júlia apressada batendo no vidro do guichê para um rapaz magrela e de barbicha que está assistindo TV.
- Calma Dona! Num tem ônibus mais não hoje. Fala o rapaz bravo diante do desespero da mulher.
- O que?
- São onze e pouco da noite, Dona! Fala ele com seu sotaque bem arrastado.
- E amanhã, qual o primeiro?
- Ah só às sete da manhã.
- E na outra cidade? Tem algum?
- Hoje não.
- Droga! Droga! Inferno viu. - resmunga a mulher - E você sabe onde tem um hotel aqui? Pergunta Júlia nervosa.
- Saber, eu sei, mas é longe daqui.
- Onde eu pego um táxi?
- Táxi!? Ah moça, tem não viu. Fala o magrela rindo da mulher.
- O quê! Não é possível! Ônibus, carroça, alguma coisa...
- Essa hora, só os pé da senhora mesmo! Júlia pensa em xingar, mas se controla e engole o palavrão.
- Me dê uma passagem para outra cidade então!
- Passagem? Tem não, só com o motorista.
- E aquele ônibus? E a mulher se vira pra apontar o ônibus que acabou de deixá-la. Ela arregala os olhos e começa a correr em direção ao ônibus, que já está fechando a porta e
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deixando a plataforma. Júlia grita e sacode a mão como pode, arrastando a mala e segurando a grande bolsa colorida, fazendo o caminho de volta ao ônibus, ainda mais apressada do que na vinda. Pablo observa a jovem mulher com seu sapato vermelho correr desesperada e desengonçada, ele tenta avisar o motorista, que já com a porta fechada está deixando apressadamente a rodoviária. O ônibus vira a esquina e vai embora enquanto Júlia desaba de raiva no meio do caminho, largando a sua mala no chão e soltando um grito baixo. Pablo carregando sua mochila preta e mais duas malas do senhor que acabara de desembarcar, vai até a ofegante Júlia que está arcada com as mãos nos joelhos e de cabeça baixa.
- Tá ruim voltar, né? Eu também queria, mas... – o rapaz ajeita os óculos e continua a falar um pouco desajeitado - Eu estou indo de carona para um hotel, aquele senhor deixa o carro por aqui enquanto faz compras na cidade e na volta passa em frente ao único hotel da cidade. Júlia ergue a cabeça respirando ainda com certa dificuldade e solta um sorriso sem graça, pois queria ficar longe daquele rapaz estranho, mas naquela noite nada saia como ela planejava.
- Acho que isso é um convite, então? – a mulher abaixa a cabeça de novo – Olha o que me restou. Onde eu fui me enfiar?... Reclama Júlia, baixinho.
- Te resta também ali, pra você se enfiar. Fala Pablo de forma irônica apontando para um par de cadeiras azuis e de plástico em frente às plataformas de ônibus. Júlia o fita com um olhar fulminante, tira as mãos dos joelhos e se ergue ajeitando a roupa.
- Vou aceitar a carona. Diz ela de forma ríspida e incrédula diante do tom irônico do rapaz, afinal ele até então só havia apresentado um comportamento calmo e passivo diante dela. 
- Eita, o casar tá cansado, mas logo que chegamos no hoter. Fala o senhor caipira, barrigudo e baixinho arrastando suas duas malas. Júlia enche os pulmões pra rebater o que o velho disse. “Casal! Até parece.” E logo desiste, deixando a reclamação somente em seus pensamentos. E todos mudos deixam a rodoviária, arrastando um monte de malas rumo ao carro do velho.
Eles atravessam uma rua mal iluminada e aparentemente abandonada há tempos, até chegarem a um descampado onde o carro está estacionado. Júlia ao ver o carro arregala os olhos não acreditando no que vê, um Fiat 147 velho, sujo de barro e muito enferrujado, com o para-choques traseiro amarrado com corda.
- Ahhh, viu... Meu carro é velhinho, mas é bão. Anda que é uma beleza. Diz o velho caipira. Pablo também se espanta. “Como caberiam as malas mais os três naquele carrinho?” Se pergunta ele em pensamentos. Sem falar no estado de conservação nulo do carro. O velho continua:
- Ah, tem uma coisa também, não tem banco traseiro, viu. Eu tiro pra caber as malas, mas vocês dois cabem no banco da frente, são um casal magrinho, magrinho. Ao ouvir aquilo, Júlia para imediatamente e solta a sua bagagem no chão.
- Como? Eu só pergunto isso! Como caberemos em um mesmo banco? Fala a mulher já quase chorando e pensando nas cadeiras azuis, lá atrás. Sendo estas as únicas companheiras em uma noite fria e por mais de sete horas, naquela velha e desprotegida rodoviária. Pablo preocupado e de cabeça baixa retira seus óculos, passa a unha do dedão direito na lente que está quebrada, lembrando-se que realmente precisa trocá-la. “É não tem jeito! È aquilo ou aquilo.” Pensa ele. Júlia tenta se acalmar e pensa nas aventuras e loucuras que já tinha feito na adolescência. Enfurnada no carro das amigas com mais um monte de meninas, todas espremidas no banco de trás rindo e bagunçando, indo para shows e baladas. “Calma Júlia! Vai ser uma história e tanto pra contar e rir com as amigas.” Tenta ela se convencer em pensamentos para topar a aventura. O velho abre o porta-malas do carro e começa a empilhar as malas, e realmente para um Fiat 147, tudo aquilo ali e mais os passageiros é muito.
- Quanto tempo mesmo é até o hotel? Pergunta Pablo.
- Ah... De carro uns 20 minutos, de pé uns 50, acho. Tem o morro, sobe desce, vira à esquerda e já tamo lá.
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- Morro? Pergunta o reflexivo Pablo balançando a cabeça.
- Ah, num é grande não, num tem asfarto é na terra mesmo, meio escuro e com mato, mas tem perigo não. As palavras do velho parecem a gota d´água, Júlia irritada esbraveja consigo mesma:
- Por que eu não olhei direito o despertador daquele maldito celular! Por quê? Por que eu não sentei ao lado de uma pessoa normal? Assim não estaria aqui!
- Ahhh e o porquê eu não sentei do lado de alguém que saiba usar um celular? Rebate Pablo irritado ao se virar e ficar olhando direto para a mulher.
- Ah então a culpa é minha, né!
- Você só reclama moça! Nunca vi, viu! Desabafa o rapaz dando as costas pra mulher.
- Júlia! Eu tenho nome viu, senhor Pablo. Resmunga a mulher, agora mais contida por se dar conta que está brigando desnecessariamente com um desconhecido, afinal sua reclamação foi apenas um desabafo consigo mesma, falado em voz alta, devido ao estresse daquele dia cansativo. Pablo para de caminhar e a princípio espanta-se pelo fato da moça saber o seu nome, mas aí se lembra do episódio da passagem de ônibus e continua a ir em direção ao carro levando as malas do velho barrigudo.       
- Hihihi... O casar brigando até parece eu e minha véia! Carma, logo chegamos no hoter. Fala o velho rindo e balançando a cabeça. Júlia sente vontade de esganar o velho, por ele achar e dizer que ela forma um casal Pablo. Um homem magro e estranho, com uma capacidade inacreditável de irritá-la com cada gesto e palavra de fazia e dizia.
Pablo ajuda o velho a acomodar as malas no Fiat 147, quando ao inclinar-se para ajeitar uma das malas o frasco branco de remédio cai de seu bolso aos pés de Júlia, que se aproximava para guardar sua bagagem. Sem pensar muito, num gesto intuitivo ela se abaixa para recolher, quando ao ver o frasco, inesperadamente uma lembrança vem a sua mente. Ela está deitada em uma cama e chora muito, ao seu lado, na cabeceira da cama, do lado de um copo de água e de um frasco de remédio tarja preta para dormir, o mesmo frasco branco. Idêntico a aquele, agora em suas mãos, um remédio conhecido e bem forte usado no tratamento de crises para ansiedade. Ela entrega o frasco para Pablo que percebe a reação estranha da mulher. Um jeito aflito e estranho, como o de quem lembra uma coisa muito ruim, uma mistura de surpresa e pavor em uma mesma feição de rosto.
- Obrigado. Eu vivo deixando tudo cair. Fala Pablo um pouco envergonhado.
- Eu já percebi. Diz Júlia de forma suave com um pequeno sorriso.
- Eu já to parando de tomar este remédio, quase nem uso mais. Diz o rapaz sentindo a necessidade de se explicar, diante do claro reconhecimento do remédio demonstrado involuntariamente pela mulher. Pablo sabe que há um grande preconceito das pessoas em geral em relação a tratamentos e tipos de remédios relacionados com problemas emocionais devido à falta grande de informação das pessoas. Ele fica em dúvida se aquela reação por parte de Júlia ao reconhecer o frasco de remédio, seria por preconceito, ignorância ou se ela por algum motivo já tinha usado o mesmo tipo de medicação. O rapaz então se lembra de sua resistência em aceitar a medicação quando o médico a prescreveu. Uma relutância tola e insensata que foi bem combatida com muitas explicações e paciência por parte de seu médico e de seu melhor amigo. “Larga de ser um troglodita machão e imbecil! Você não é assim. Hellow! Século vinte e um. E vai tomar o remédio sim! Ou eu vou dá chilique!” Pablo sorri ao lembrar-se do amigo Felipe, que é intitulado por si mesmo de Phill.
- Pronto! Tudo guardado é só seguir agora! Diz o velho ao bater a porta do porta-malas depois de guardar a mala de Júlia. Ele dirige-se ao lado do motorista e entra no carro velho, Júlia e Pablo ficam indecisos para saber quem vai primeiro, até que ele toma a iniciativa, abre a porta e se espreme no banco do carona. Mais uma vez estariam ambos sentados um do lado do outro, dividindo um aperto ainda maior. Ela do lado de fora do Fiat 147 e ainda segurando a sua grande
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 bolsa colorida, percebe que esta não teria espaço naquele banco e pela porta do carona joga-a para trás do veículo junto com o restante das outras malas. Delicadamente ela se senta ao lado de Pablo e vai se aproximando lentamente até perceber que teria que quase sentar no colo do rapaz para que a porta possa fechar.
- Você pode ir mais para o lado? Por favor. Diz a mulher incomodada a Pablo.
- Não dá, senão vou atrapalhar o motorista.
- Eita moça, seria meió a senhora ir no colo do seu marido.
- Eu estou bem assim. Responde Júlia agarrada com as duas mãos na porta do carro e sentada de forma completamente desconfortável. O senhor coloca a chave na ignição, a gira, o carro faz um barulho alto e seco, mas não pega. Ele tenta de novo, e nada, Júlia já começa a ficar impaciente com aquela situação, o velho tenta mais uma vez e finalmente o carro pega e sai fazendo barulho pela rua escura em meio aquela noite fria e nublada.
O Fiat 147 acelera pela rua esburacada chacoalhando e rangendo muito, Júlia sente que a qualquer momento o carro pode se desintegrar e reluta em acreditar que aquilo está acontecendo realmente com ela. Pablo diante daquela rua escura e do farol fraco do carro já começa a passar mal, sentindo-se como que se estivesse lentamente abandonando aquela realidade rumo a um buraco infinitamente escuro. É quando mais uma das reclamações desnecessárias e um tanto mimadas de Júlia o trás de volta ao aperto dentro do Fiat 147.
- Será que você realmente não consegue ir mais para o lado! Fala a irritada mulher.
- Meu colo está disponível, e você já o conhece muito bem! Diz o incomodado Pablo.
- Ah... Vai... E se enxerga rapaz!
- Você só sabe reclamar, nunca vi! Fala o rapaz pausadamente. Júlia a princípio fica envergonhada com o puxão de orelha, mas logo se irrita mais, achando-o abusado e inconveniente. “Ahhh, quem esse cara estranho acha que é?” Pensa ela virando o rosto para Pablo e observando o matagal escuro pela janela. O velho debruçado sobre o volante dirige atentamente pelas ruas escuras rindo calado das rusgas do casal. De repente o carro começa a ranger mais do que o de costume, e a andar mais lentamente. O Fiat 147 começa a subir uma ladeira não muito íngreme, mas quase intransponível para o velho e pesado veículo. Pablo não consegue parar de pensar como aquela mulher ao seu lado, jovem bonita e independente pode se desequilibrar tanto assim. Deixando de encarar os problemas de forma objetiva e passando a ser tão visceral, só reclamando, reclamando, inutilmente por coisas tão bobas. Aí, ele se dá conta que, embora seus problemas não fossem tão tolos, ele ainda estava preso aos acontecimentos ruim da vida. Reclamando, reclamando, não para o mundo, mas para si mesmo, remoendo, revivendo, sendo visceral, e também de forma inútil. E percebe que a vida é como aquele carro, andando agora por um caminho difícil, escuro e íngreme, carregando bagagens pesadas e a mercê dos acontecimentos. Mas uma hora a estrada muda, a noite amanhece, a subida desce e a estrada fica plana, fácil. O velho segue pisando fundo, levando o acelerador do carro ao limite para que este consiga dar conta da subida. Júlia cansada e nervosa perde-se em seus pensamentos refletindo sobre sua vida, em suas escolhas, e desejando intensamente sua cama, seu quarto. A jovem mulher tem uma vida agitada, não consegue parar de viver intensamente o agora, não consegue parar de trabalhar freneticamente, de correr, de reclamar. Pedindo por um caminho tênue e recusando-o logo em seguida, pra ficar ligada no automático, vivendo sem viver e fugindo de si mesma. A subida termina e o Fiat 147 começa a descer, ganhando mais e mais velocidade num caminho longo e sinuoso. O coração de Júlia vai à boca, quando ela tem a sensação de estar em uma descida de uma monta russa escura. Pablo atento e acompanhando com as curvas como se estivesse dirigindo fica apreensivo. O carro começa a chacoalhar mais e mais, o braço curto do velho motorista briga como pode com o volante grande e marrom.
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- Eita. Tamo pesado, mais tamo velois! Diz o velho rindo bem alto, que segue pisando aos poucos no freio para tentar evitar que o carro ganhe muita velocidade e pra conseguir fazer as curvas. O velho então percebe que o acelerador está agarrado do assoalho do carro. Cada vez mais o senhor pisa mais fundo no freio pra conseguir controlar o carro. Pablo e Júlia vão ficando com mais medo, tanto pela descida quanto pela risada do velho. O velho aperta e aperta o freio e nada, e o carro vai ficando cada vez mais rápido. Com dificuldade e muita força no braço o velho consegue dominar o volante e contornar a curva não tão fechada à frente. Ao fazerem a curva, Pablo é empurrado para cima de Júlia que imediatamente começa a resmungar.  
- Eita! O carro tá indo ladeira abaixo! O acelerado tá preso e tamo quase sem freio! Grita o velho. Júlia arregala os olhos e se agarra a Pablo. Ele sem saber o que fazer apenas olha fixamente para o caminho à frente, rezando para que a ladeira acabe.
- A curva à frente é muito fechada e o barranco é pequeno. Num tem jeito! Vamo ter que pular! E o velho já leva a mão no trinco da porta.
- O que!!! Grita Júlia de olhos bem fechados. Pablo olha em volta desesperado. O velho empurra a porta com força e salta do carro. Ele sai rolando sobre o mato alto. O rapaz olha tudo aquilo, não acreditando. Ele abre a porta rapidamente e com toda a sua força a empurra, no mesmo instante abraça Júlia fortemente e juntos se jogam do veículo. O mato alto a beira da estrada ameniza a queda e eles abraçados saem rolando pelo chão. O Fiat 147 segue reto por mais umas dezenas de metros e ao chegar à curva fechada, passa direto seguindo barranco abaixo. Não há árvores muito grandes à frente e o carro segue pipocando se embrenhando cada vez mais no matagal escuro.




















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